O Poema de Joana

1.



Sento-me à janela, hesitante e sem sono, na esperança do consolo de algum luzir, e à minha volta vielas vazias desde a hora das novelas, dois canais de televisão que adivinho nas luzes baças e coloridas dos recortes a vidro dos prédios em frente, restos de jornais do Avante, Correios da Manhã rasgados, folhas da Capital, pacotes de leite em rodopios com páginas do Diário de Notícias, papeis anónimos, cartas por abrir, declarações de amor que ficaram sem resposta, vira latas peludos a mijar nos pneus, contas de telefone que ninguém pagou, revistas Maria escancarando interrogações sentimentais, uma ignorância das vias que me aflige de mansinho, ânsias de outra coisa com que deambulo pela casa, da sala para o quarto e do quarto para a sala, inquieta, um silêncio que não entendo e que é agonia em mim, restos de outros tempos esfarripados nos meus sonhos, reclusa no anoitecer solitário, em maneios ao que poderia ter sido e que por não ter sido insiste em atravessar a noite, fugaz, lúcida das tonturas do possível, em conversa com o que não torna a ser.

Há meses que ando nisto, sem dormir à noite, fechada na timidez do que poderia ser a minha sorte se assim não tivesse sido a minha vida, resignada nas queixas sem saber a quem, sufocando nas histórias que sem me contarem adivinho, à minha maneira, torpe, agitada, indecisa. Em malabarismos com o que entendo, que é tão pouco. O passado emaranhado em mim num silêncio que me esgana. Os dias mais de plástico que os vampiros a fingir do comboio fantasma da Feira Popular, sacudidos por vendavais que vêm não sei de onde e me atravessam de dentro para fora, me impedem de dormir apesar do sono que me tira a atenção. Eu gaga, eu parva, eu tonta de repente, num calor tão novo, apesar das conjugações irregulares dos verbos, das cadências previsíveis, das terminações a giz vermelho no quadro, das cantilenas gramaticais e frias que nos impõem a seguir à geometria obtusa dos ângulos, tão diferente da pele trigueira e macia, tão pontiaguda de compassos sem a melodia dos cabelos ondulados que ele penteava mal, de olhar alheio e baixo, à procura de um lugar para se sentar. Vi-o pela primeira vez num dia de manhã, sentada ao fundo de uma das salas que dá para Cacilhas. Entrou de mochila na mão, de casaco de ganga, de uma ganga azul já gasta, como um que eu depois comprei para o ter junto à pele numa superstição incompreensível de avivar a memória do meu corpo. Nunca mais dali saí, e ainda lá estou, de boca aberta apesar de fechada, sentada ao fundo da sala apesar de à janela, da sala para o quarto e do quarto para a sala sempre naquele dia apesar de ser hoje. Fico quente e inquieta, quando penso nisso, com suores a transpirar-me na pele de repente de galinha, depenada de fingimentos mas envergonhada da nudez que sinto por baixo da roupa, de repente a tiritar calores, ansiosa numa alegria que me deixa a voz aguda por dentro e me impede de falar, coro a tremer de vergonha e com umas guinadas em mim.

Fecho os olhos com muita força para que não me vejam e respiro fundo. Não sei o que é isto. Quando era pequena costumava fechar assim os olhos e fugir de casa quando me cansava de aturar adultos, para andar de pés descalços no quintal de casa dos meus avós, apesar do pó e das pedras, apesar das formigas que desenhavam carreiros preocupados de previdência onde seguiam as migalhas e outros restos minúsculos de almoços, apesar dos escaravelhos a rebolar condenações de Sísifo, dos lacraus pontiagudos, das cobras que perdiam peles, das louva-a-deus abocanhando maridos pelo trinar de grilos e cigarras, e de me pedirem

Joana, não saias de casa que o sol faz-te mal

e eu fugir mesmo assim para ficar perdida a olhar enternecida de espanto para a multidão da bicharada anónima que aparecia nervosa, apressada ou rastejante dos cantos mais improváveis do jardim. Ia de casa ao quintal numa agitação de miriápode por uma viela curva em que cruzava

Olá!

senhoras velhas vestidas de preto carregando à cabeça, num zigue-zague de girafa, cântaros que lhes adivinhava cheios e lutos pesados demais. Havia nas paredes da aldeia fotografias de homens sorridentes de braço no ar, mas de punho fechado. Letras, desenhos e nomes que não entendia mas que eram pouco diferentes dos martelos da oficina dos carros onde me apetecia morder a borracha dos pneus ou das foices de outras mulheres que saiam de manhã em camionetas de lenço em volta da cabeça para o trabalho com um chapéu de afastar constipações medonhas em razão de vidas ao sol em excesso.

Havia também, se me lembro, outros a fazer vês com os dedos, insistentes, como num dia de manhã em que enchiam chorando, em redor de um actor que reconheci, o ecrã da televisão, e me chamaram estremunhados pela janela da cozinha que dava directamente para o jardim na urgência que eu fosse depressa e visse porque

Morreu o ministro, Joana, morreu o ministro!

e eu apesar disso a contar formigas, antes de as afogar. Arrumava as bonecas e os tachos de plástico, os carrinhos do meu namorado a fingir, enchia de água os buracos das formigas, atirava pedras às galinhas das vizinhas, pulava a enxotar os pardais.

Caiu num avião, Joana, vem depressa, morreu o ministro!

Ou se calhar foi ao contrário.

Morreu o ministro, Joana, caiu num avião!

E eu sem entender, mas assustada, suspensa nas horas ao sabor do tempo, pegada ao carreiro das formigas que carregavam, meticulosas, os destroços do avião para um lugar escuro debaixo da terra.

De olhos ainda fechados, corre pelo quintal fora em mim uma criança que eu fui há pouco, sinto na pele o calor do sol de Dezembro, o cheiro frio da relva verde dos relvados das piscinas, a quentura poeirenta dos campos de trigo da Primavera em redor da aldeia, incompreensivelmente no quarto comigo.

Cuidado Joana! Não caias para cima das rosas!

Já quase meia noite e eu sem sono às voltas fora de horas pelos recantos da casa. Amanhã as aulas em que nos empurram para qualquer coisa que seja útil e tributável, encarreirados numa agitação de antenas e migalhas.

Quando fores grande o que é que queres ser, Joana?

E eu sempre na lua a fugir por interstícios, sozinha num espanto das coisas, de olhos muito abertos no fundo de mim, calada a falar comigo porque não me entendem, porque os não entendo, incapazes de saltar pela parede da escola, incapazes de música, incapazes de um poema, incapazes de uma pedrada qualquer que os puxe para sensações infinitesimais do corpo a roçar a imensidão do céu, sempre uns com os outros numa inquietação sem fim, sempre uns com os outros na ignorância da dor, incapazes de um prazer qualquer sincero que não seja uma moda peganhenta em que se comem uns aos outros, incapazes de uma provocação a sério, de um instante de sonho em que vêm outra coisa, tacteiam outra coisa, anseiam por outra coisa.

Acorda, Joana!

dois e dois são quatro, quatro e quatro oito, oito e oito dezasseis,

Joana!

dois vezes dois quatro, vezes quatro dezasseis, Joana!

Se continuas assim sempre a perder o olhar no infinito, não hás-de ser ninguém na vida, Joana, e numa sexta-feira à tarde de Outono, uma psicóloga sentada à minha frente do outro lado dos anos da faculdade em que andou e eu não, a perguntar-me

O que vais ser Joana?

e eu com vontade de lhe responder

Nada

mas em vez disso um silêncio incómodo entre nós, ela de sorriso suspenso na sala vazia, eu de mãos enfiadas nos bolsos, as paredes a insistirem um papelão rosa prensado e nervoso de pré-fabricado, à espera de uma resposta que me abrisse o futuro, e em vez disso eu

Não sei

a remexer o papel das pastilhas elásticas que guardo nas algibeiras sem saber porquê, a música a insistir-me na lembrança, as aulas a desfilarem-me na ideia, incapaz de lhes encontrar uma razão, eu alheia à insistência com que nos perseguem, sem nos explicarem nunca o porquê de tudo em vez de nada, apesar dos desenhos a giz no quadro e dos filmes a cores sobre bebés e espermatozóides de cauda a abanar rumo a óvulos escondidos no fundo de úteros onde as nossas angústias se enfiam. E apesar disso uma surpresa de dar comigo, um arrepio que se faz calor, um espanto em que soa o vento e tremo por dentro de pavor. E depois, as coisas mansinhas a somarem razões à minha volta, a minha mãe a olhar para mim, indiferente aos mistérios, o meu pai ocupado com a antena da televisão, eu preocupada com o ter nascido, com o haver céu e terra e mar, por dar comigo assim,

Sou isto

com cinco dedos em cada mão e outros tantos em cada pé.

E antes ?

Não existias, Joana.

E depois?

Depois, não sei.

Continuo a correr em mim pelo quintal atrás dos cães e dos gatos, não sei se antes se já depois de existir (penso que só havia cães, não havia gatos) apesar de sentada agora junto ao parapeito da janela e no meu quarto o cheiro da terra depois da chuva, na noite o ar quente e doce da tarde antes do fim, eu encharcada dos carreiros em que chapinho de pés descalços, na água que vagueia por entre malmequeres e hortênsias, roseiras e laranjas caídas na Primavera, couves e alfaces frescas, morangos vermelhos e tomates em rama. A mesma água do fundo do copo que, para empurrar o nervoso, bebo outra vez, sem comprimidos, e que foi da nascente à fonte e da fonte à sede e se espalha vaga de lonjura em mim.

Calma, Joana, calma!

Água infantil que confundo com a luz e foi do mar ao céu e do céu aos rios, do chão ao fundo, fonte, e do copo à boca, esquecida das algazarras matutinas, do espernear do bibe do ante primeiro dia da pré-primária, do espelho das nuvens nas ondas, da agitação íntima de mim mesma nas danças requebradas das marés. Água em que me banhei, desassossegada das birras das botas de biqueira que me apertavam logo de manhã os dedos dos pés e me deixavam dia fora num titubear hesitante e ortopédico. Água do balde, a mesma que brota, lenta de mar, lágrima sem sal, pelas dobras desassossegadas do meus olhos, prenhe das dores dos meus sonhos. A do jardim, por infantil, da torneira que limpava dos tombos e dos medos das trupes de outras crianças que se afrontavam numa porrada permanente pela vida e tinham bandeiras e chefes e subchefes e cantavam canções que não eram de embalar, zaragateando-se em zangas de capa e espada

Tás morrido!

Não tou nada!

Tás!

Não tou!

e eu a chorar de solidão no pavor de outras Joanas, Marias, Saras, a puxarem-me o cabelo, a puxarem-me o nariz, a rasgarem-me a roupa, numa algazarra sem explicação

Não chores Joana, brinca com os meninos, vai brincar com eles,

e eu apavorada com a agitação que nos puxa, empurra, pula, cai, corre, cai, se rebola cai, se levanta, grita, insiste, chama, berra, chora, nos leva, nos apanha, nos persegue, nos bate, nos goza, nos olha por fora e por dentro com um olhar alheio, só por eu ser mais uma.

E à noite a minha mãe, em casa

Estás toda suja, Joana, o que é que andaste a fazer?

Antes de me esfregar a cara, as mãos, as pernas, na água da torneira que se enfiava pelo ralo do bidé com os restos do dia.

Mas isto é da Joana, ou quê?

Limparam-me as mágoas com a água, os desenhos no quadro com que me entretinham de manhã com a água, a ardósia das letras com a água, os números, as contas, os cálculos, com a água. Limparam-nos o sangue do corte do cordão de ter nascido sem saber porquê com a água, as lágrimas do choro com a água, o negrume do desespero com a água, o véu do esquecimento com água. E pulámos, chapinhámos, nadámos na água das praias onde se confundem os rios que correm, o mar salgado, papagaios de papel, línguas da sogra, veraneantes bronzeadas em biquini, mostrengos medonhos e maridos azedos

Olhábatatinhafrita!

Oláfresquinho!

e peixes insondáveis dos abismos com luzinhas na testa que passam a vida numa escuridão que me apoquenta. Só falta a areia inúmera a crepitar no chão com as minhas andanças. As beatas mal apagadas a queimarem-me as palmas dos pés, o meu avô a fazer o pino, os mirones em magotes a patrulhar com o olhar o vazio. A minha avó apanha conchas, eu faço e volto a fazer castelos com o que me espera. A areia das praias esculpe inúmeras casas no que foi aberto antes do meu tempo. Passam gaivotas, chegam barcos de pesca, sacam as redes, peixes e mais peixes numa abundância prateada a brilhar ao sol, gente a comprar

Quanto custa?

os pescadores apanhados de surpresa pela pressa dos veraneantes, o meu avô de carteira na mão a apontar para os carapaus que cheiram a distância

Aqueles!

eu irrequieta a fugir dos caranguejos que nos atropelam os dedos dos pés, ensonada no regresso a casa, do tempo à espera na paragem do autocarro, do caminho trepidante, das ondas que me rebolaram e levaram, salgadas, frescas de espuma, na rebentação. Acorda, Joana! Já chegámos.

E agora nem consigo dormir.

Pai, dizes-me o que é o amor?

Mãe, o que é o amor?

E em vez de respostas, ela que chega tarde do emprego de que se queixa, ele a dar uma volta à cidade com ares de quem perdeu um brinquedo, fica no café à noite a ver a bola, de jornal engelhado no bolso, chutando à tarde as pedras brancas da calçada depois de fintas falhadas ao destino. Às vezes cruzo-me com ele e não me conhece, de mãos nos bolsos, a barba branca do cansaço da luta com inimigos que só ele vê, enfiado num casaco de xadrez azul e castanho claro que de mês a mês levo à lavandaria, rodopiando de tristeza por trás dos óculos de fundo de garrafa que lhe fazem uns olhos pequeninos de ervilha iguais, pelo que diz, aos de uma professora que ouviu todos os dias até à quarta classe, gorda, pelo que conta, apertada num espartilho de decências que não a deixavam respirar, com um penteado de arara assustada pelos visitantes de domingo do zoológico de Benfica, solteira, sempre zangada, a insistir irreverências à bondade numa soberba de sabichona

Dá a mão à palmatória, Gomes, dá a mão à palmatória, nunca hás-de ser ninguém na vida, Gomes!

e lhe infligia vergastadas de disciplina ao ritmo da tabuada, e repete rindo, girando de braços no ar, numa drama sem palco para um público que não há

Corto-tos rentes Gomes, se não matas os terroristas,

suando envergonhado um risinho nervoso de arrependimento, perdido no ar sob o peso do irremediável, voando sobre uma Guiné fugaz da Avenida 25 de Abril, em Almada, com ares de quem não é ninguém por desígnio da professora da quarta classe, de volta das pedrinhas da calçada em que vê guerrilheiros, bombas e granadas, longe de nós, de repente, murmurando ao ouvido dos anjos injúrias imperceptíveis, de jornal no bolso, braços abertos e motores rugindo numa caça ao inimigo em que teme dia após dia que a professora da quarta classe, aliás o presidente do Conselho de Ministros, aliás o carteiro que é o bufo da Pide para bem da nação, aliás o sargento que vê aparecer a cada esquina de catana em riste, lhos corte rentes e fecunde assim a terra de fúrias.

Ó Sr. Gomes você é um avião a sério, não é? qualquer dia aterra aqui na loja, e enterra-se em mim, não aterra?

E ele ausente num céu de solidão alheia, sem anjos visíveis, sem ouvir a pergunta da D. Custódia dos jornais e das revistas, de ervilhas escuras vidradas a fingir que são olhinhos infantis, dois e dois quatro e quatro oito e mais oito dezasseis, ninguém na vida Gomes, não hás-de ser ninguém lusito, infante e vanguardista,

Corto-tos rente Gomes, se não matas os terroristas,

Ouviste Gomes? Não hás-de ser ninguém!

E o Gomes nada nem ninguém da casa para o trabalho e do trabalho para o café até à hora de jantar, quando a minha mãe chega com a litrada de cerveja, a pescada por cozer, põe as batatas a fazer piscinas de um lado ao outro da panela

Joana, vai chamar o teu pai que já são horas

Ó pai, vem jantar!

Ó Joana, só mais um copo que hoje o Bento joga na Luz

Ó pai, vá lá!

Ó Joana, ele e o Carlos Manuel na Luz!

Ó Pai, foi a mãe que disse!

Pronto, foi a mãe, foi a mãe, anda lá

e depois do queijo um arroto, e depois do pudim a novela, ele a bola, ela a novela, ele a bola, ela a novela, num puxa e empurra que me afasta para labirintos que trago em mim, perdida em recantos onde não me encontro, todo o santo dia numa labuta desalmada para responder a porquês, indiferente à bola e à novela, morta de sede e de fome de razões não sensíveis, a arrumar, dobrar, pendurar as questões que me assaltam a cada esquina, estremunhadas, aterro, vou ao fundo, levanto vôo num silêncio que me tira o juízo, de casa para a escola e da escola para o sonho, lenta, leve, lenta, do dia para a noite e da noite para o rio, com ânsias de outra margem, com suores de outra coisa, e eles a bola, a novela, o jornal, a novela, os debates, a novela, os concursos, a novela, frente à qual adormecem cada noite, indiferentes um ao outro como o Timóteo e a mulher, afastados apesar de casados, sem se tocarem a não ser para um bom dia quase de vénia, um beijo na testa, a mão no ombro para dizer até logo, ela para ele

Timóteo

ele para ela

Mulher

longe um do outro numa timidez de partir o coração, ela para ele suplicando um carinho, uma palavra ao menos, que seja mais do que uma indiferença de risco ao meio e goma nos cabelos, mais do que o sapatinho de bico abrilhantado, as calças de vinco impecável, a camisa e o pulover sem mangas, o bigode aparado sem falhas, um beijo na testa que me dá frio, um adeus que me deixa desamparada, um até logo com que fico a sentir-me lisa como as paredes de casa, num vazio sem rostos, ausente apesar de ali algures, os móveis e eu numa comunidade de indiferentes.

Chego a casa ao almoço e ninguém, o resto do jantar num tacho e ninguém, as batatas afogadas de exaustão, com fios de pescada desfeita e um ovo, ninguém para além dos móveis, o gato e eu, suspensa num até logo com que me despeço de manhã, o meu pai de braços no ar voando na companhia de anjos cansados, a minha mãe de olheiras resignadas, num abandono que me dá nós de tristeza aos nervos, emaranhada nos desígnios do café com leite em que mergulha uma torrada apática, pronta para o dia que antevê igual a tantos, na companhia de colegas com que atravessa os meandros das horas, fintando as chatices, atada a si própria como a uma carga de alhos, chega quase à noite, sempre igual, enfiada no escuro para esquecer o dia, despojada de alegrias, nua de esperanças, sem adornos de futuro, na cozinha, rigorosamente fardada de avental, no sofá, equipada de novelos de lã, imersa nos modelos das revistas, eu

Até logo vou sair com amigos,

ela

Até logo, filha, não venhas tarde

eu

Não venho

O meu pai caído do avião para o sofá, exausto da perseguição aos terroristas com que chegou com um parafuso a menos de África, o gato às patadas ao novelo a fazer as vezes de um rato, parado de súbito sem porquê a olhar para mim espantado, de olhos abertos, esquecido de tudo, a minha mãe de agulha enfiada no croché

Não venhas tarde!

eu

Não venho!

sozinha a fingir que é com os amigos, no cais de pé apesar das horas, os barcos sombras oscilantes num espelho tão extenso, a lua um risco branco tão largo, a água em jigajogas à apanhada com as estrelas que mergulham no marulho luminoso, cacilheiros escassos, pneus a sorver os empurrões do baloiço do cais, chiando rangeres de Adamastor, o cheiro a maresia, as algas, um cigarro pelo menos onde acendo emoções, o vento a dar-me arrepios que me sobem pelas pernas e me estremecem a bexiga, as luzes do Barreiro a desaparecer ao longe, quero fazer xixi e não há onde, bares abarrotando barris de cerveja e marisqueiras pardas de neons onde as amêijoas nos cospem fiozinhos de indignação, bifanas, pregos e cachorros, a bola, sempre a bola, mulheres de meias de vidro rotas, botas até ao joelho, saia curta, bêbados em magotes a hesitar o passo, de braço dado, e Lisboa ali, inalcançável apesar dos cacilheiros, como num sonho, pregada à parede de um restaurante chinês, estampada a cores numa seda macia com nuvens de algodão, legendada a vermelho por letras quadradas e pontiagudas que eu não entendo, a flutuar num vazio de budas de porcelana eufóricos, afundados no rio de nariz apertado, a aguentar no nada a cidade, íntimos dos peixes e das Tágides que nos impigem nas aulas de português e são afinal mulheres gordas que trabalham a dias nos escritórios da Transtejo e empurram os marujos para travessias íntimas que vão de Cacilhas ao Ginjal e se perdem depois na palha do mar de Lisboa, debaixo da Ponte que zumbe horas de ponta e filas de enfado numa lengalenga de cada dia nos dai hoje dos dormitórios desterrados, do trabalho para casa e de casa para o trabalho, zumbe que não zumbe, volta que não volta, num comércio amoroso das duas margens, mulheres de avental, balde e vassoura, que fazem arribar ribombantes navegantes e navios, despidas ás vezes no banho com as sereias, mas inscritas no sindicato e maltratadas em casa por maridos surdos atados aos mastros das balizas dos estádios que vêm na televisão, atravessando os serões de cera nos ouvidos, fieis da bola com salários em atraso, que à tarde, nas imperiais do Canecão, se benzem das lembranças da Mocidade, dos horrores de África, das promessas falsas da revolução, e compram rente ao quartel dos bombeiros as Ginas e as Tânias em que os filhos se educam às escondidas, adocicando o coração com ideias ofegantes que nos trazem para as tardes em vez da escola, hirtos das gramáticas que não compreendem, a tremer escondidos por trás do hálito de vinho verde das tabernas.

São bandos de pardais despenteados, de buço e barba mal salpicada pelas bochechas borbulhentas, entontecidos por calores que os privam de palavras, gaguejando intuitos que não têm, com pedidos de colo e festas que me deixam sozinha e fria, apesar das mãos nervosas a correrem-me o peito, das bocas hesitantes pele fora, cravando-me um cuspo de línguas afiadas que me aperta o estômago e uns abraços que me enojam e me deixam fria

Não gostas Joana?

e eu diferente das minhas amigas, indiferente à perspectiva dos encontrões das tardes passadas nas camas dos pais que estão na labuta das formigas, do sofá de nervos frente à televisão com filmes de mulheres nuas e homens despidos enfiando-se-lhes repetidamente, apressados, pelas entradas do corpo, eu de vista enojada pregada na parede, perdida no vazio dos rastos que o mundo me deixa no olhar, dizendo, não, chamando talvez uma pedra branca quente de sol, terra negra de luz, prenhe de amanhãs, talvez num sopro a tua pele, de pimenta púdica, uma carícia que seja pesada como o bater das asas de uma borboleta e faça da minha pele um arrepio e nada mais, talvez o marulho baixinho das praias, o sopro das ondas, suave

Joana, não queres?

e eu sem saber dizer palavra, presa nas nuvens de algodão fofo, doce de ternuras de que me priva a pressa com que me apertam

Joana!

mãos sôfregas hesitando rente às mamas assim que me sentem recuar, tímidas da idade, ignorantes da amplidão do céu, do sabor a maresia pairando sobre a areia molhada, do tinir tonto das têmporas em que martela o coração, errando no cheiro acre das virilhas, na certeza salgada da pele

Joana!

o sangue numa corrida de suor sem tino, desfazendo-se em espuma com as ondas por entre as rochas da Caparica, numa quentura que me arrepanha a alma, sal

Joana!

que me estala mansinho na boca, me abre as narinas sôfregas de água a ganir oceanos

Joana!

ausente naquele tactear desatinado que me puxa a roupa e recua, me engelha a alma e se afasta, numa solidão tão povoada de pavores diurnos, nocturnos, tardios de tão cedo que me invadem, o tamanho dos pés que de repente desconheço, as pernas às vezes tão pequenas, às vezes enormes, andas em que me desequilibro, tonta de mau jeito, as borbulhas a rebentar secretas, nas costas, nos braços, por baixo das calças, das saias, das camisas, cada vez mais encolhidas, outras vezes, que nojo, cabecinhas brancas a latir, prontas a estilhaçar-se no espelho se as esmago, na cara onde as escondo, com pó e cremes de frascos de vidro, com garrafinhas de plástico em que gasto a mesada, eu sempre tão feia a tropeçar em mim como numa coisa familiar e estranha, acordada à noite e caída dos aviões em que o meu pai me leva pelos céus em fogo, enroscada na cama numa pele arisca,

Joaninha voa, voa

assustada como no dia em que empurrei a custo a porta que levou presa um dente atado a um fio e fez desmoronar o mundo em que eu era tão bonita, uma Joaninha tão mansinha e que tinha a cara da mãe, criada no meio de bandeiras, bichinho manso de cores garridas,

Joaninha voa, voa, que o teu pai está em Lisboa

e o meu pai, afinal, no ar com o sargento à caça de terroristas pelo Império, aterrado num café da cidade a ver a bola, com bandeiras vagamente vermelhas em que fingia que acreditava, a minha mãe tão diferente da que eu era por trás da cara da dela que colavam à minha, ela impedida de sair com as amigas à noite porque parecia mal, ela que não podia ir sozinha ao cinema sem parecer suspeita, que devia voltar a horas para casa para não ficar mal vista, sempre de saia por cima dos joelhos, sempre calada, eu criada no meio de bandeiras e de passoubens, bichinho manso de cores garridas

Joaninha voa, voa, que o teu pai está em Lisboa, com um saco de dinheiro para pagar ao sapateiro.

Eu tardes inteiras de domingo a passear pela cidade vazia depois do cinema, a fingir a companhia de amigas que se enfiam com os namorados nos quartos, ou nos vãos de escada, ou nas grutas escondidas dos jardins, perseguida por idiotas de borbulhas que me querem despir sem razão, cigarro após cigarro, café após café, com livros nos bolsos para contar histórias à que encontro comigo em mim, a assobiar devagarinho uma esperança de futuros diferentes das foices e caveiras das camisolas pretas dos meus colegas que arranham desgrenhados as guitarras, embebedam nas tabernas e nos cafés, com bagaço, a ausência que encontram em casa, a lembrança dos pais à porrada nas mães, das mães a chorar nas escadas, das rusgas, das listas telefónicas com que as policias fazem o gosto ao dedo quando os levam dentro, carregados de haxixe até aos olhos miudinhos que vermelham sangue, cheios de fome e de sede, a sorrir parvoíces que ouvem nos discos, e a canção na noite distrai-me de mim e do espanto do cheiro novo do meu corpo, do sangue que me deixa envergonhada nas aulas de ginástica, a correr em mim como uma promessa, no duche de manhã, apesar da minha mãe

Joana não tenhas vergonha, és mulher

e eu na verdade tão pequena ainda, tão feia, tão desajeitada, assustada com os pelos, inquieta com o que vão pensar, sem dizer nada porque pensava que parece mal, calada junto àquela em que me tornei aos poucos, de pés grandes, com os mesmos cinco dedos de sempre, e não quatro, e não seis,

Joana lava os dentes antes de te deitares, Joana não te deites sem comer, Joana já são são horas de ires para a cama

e a noite a olhar, nítida, para mim, irmã desconhecida que trago num silêncio temível e deixa tudo a falar baixinho, luzes às janelas, guinchos de rodas dentadas, marteladas distantes nos estaleiros a embalarem-nos com sonhos de transatlânticos, outras vezes a chuva a bater leve levemente e a chamar

Joana!

a música do andar do lado, pancadas na parede com cadências e rangeres que não entendo

Joana!

os vizinhos de cima que chegam tarde e se esquecem de tirar os sapatos e os saltos martelam-me a vigília como os operários da Lisnave a repararem-nos os sonhos, com roscas e parafusos gigantes. No cais marujos de chapéus com pompons azuis, mulheres a rir de lábios brilhantes e vermelhos, garrafas de cerveja, gin e limão e sereias de terra nos bares com nomes estrangeiros, onde se despejam em desancas as ânsias dos oceanos.

Sinto-me pesada em mim, de olhos embaciados, empurrada pelas mãos cegas dos amigos das minhas amigas

Não queres curtir Joana?

que fogem da escola e se agarram a nós com uma insistência de berbigão

Não gostas, Joana, não queres?

Antes de adormecer, palavra que saio de mim, eles frangalhos fugidos à pressa do aviário, com arames nos dentes a esconder as imperfeições, insistindo-nos na pele numa cegueira sem pudor

O que é o amor, mãe?

eu numa impressão que caio sem fim, me ampara o susto e acordo, num suor irrequieto de labaredas, os sonhos escondidos de olhos abertos por trás dos móveis, tudo a tremer num gemido de acordeão furado, as gavetas, as paredes, o chão, tudo range e crepita da inquietação que escondem, soam estalidos que me apertam a garganta com nós de gravata que não uso

Truz-truz

Quem é?

É o preto da Guiné, de charuto na boca e sapato no pé

Latem luzinhas com horas, abre-se a porta do quarto e ninguém a empurra

Truz-truz

Quem é?

Ouço dizer que os homens à noite acordam estilhaçados no quarto por minas de África, de alma aos cacos no coração da noite, em labaredas a cama na quentura tranquila, em chamas na brancura dos lençóis, o silêncio em gritos no pulso que se amansa,

Já passou Tó, já passou!

e que as mulheres os confortam de anseios sem fim com ternuras de fada. Sargentos, furriéis, majores, generais, sentados tímidos muito apertados num canto ao fundo da minha cama, de pés para dentro numa mudez de sala de espera, roídos desde as entranhas pelas lágrimas que não choram, por ânsias que não dizem,

Achas que somos assassinos, Joana, achas? Tiraram-nos tudo Joana, tiraram-nos tudo! E agora, Joana? Achas que somos assassinos?

E eu a olhar para eles sem entender nada

Não sei, nunca ninguém me explicou

a vê-los de vez em quando em rodas de mãos dadas com o meu pai no jardim, eu às voltas no carrossel com as outras filhas, ignorantes como eu, felizes só com o movimento, os risos que nos dirigem, o algodão doce da infância, as paredes coloridas e cheias de letras,

Come a papa, Joana, come a papa e deixa os senhores em paz!

a cruzá-los anos mais tarde nas ruas, fardados de quotidiano, disfarçados de civis, tributáveis, de casa para o emprego e do emprego para casa, alheios, afastados, a fugirem do inimigo que lhes aparece ao espelho, os acorda à noite fora de horas e os empurra para fora dos sonhos que não têm

Tiraram-vos o quê?

para virem envergonhados sentar-se no nosso quarto a pedir um amor que não lhes sabemos dar e que ninguém nos ensinou.

No guarda fato alentejano, vermelho como o sangue do meu ventre que me apoquenta por períodos, a roupa cochicha canções e o bibe cantilenas do jardim de infância, os sapatos, que agora só me cabem nas mãos e há pouco me apertavam os pés, a olharem na minha direcção, eu já crescida, uma placa que trazia ao peito com Joana Gomes, ainda não intrigada com o amor, ainda com os bolsos cheios da areia em que mergulhámos manhãs e tardes, as grades do infantário onde éramos só luz e me puxavam os cabelos, restos de antes de eu ter nascido, rostos, ruínas e rastos que em cochichos os vivos traziam dos anos mortos, e com eles os cadáveres do tempo antigo, cobertos de cravos, numa violência contida nascida de outrora, os corpos tolhidos pela dor apesar da alegria, na curvatura do vazio apesar do sorriso, na amargura do tempo apesar da esperança, uma festa de nomes e de gente de mãos dadas nas paredes, comícios de bandeiras encarnadas, eu curiosa à procura não sei de quê, debaixo das saias das amigas da minha mãe. Elas para mim

Joana Gomes à Gomes de Sá és um gomo de limão tão bonito com os teus olhinho de sonho, lembras-me extensões de terra enorme, horizontes em que soa ainda o dia, cansado, com as cores a fazerem-se outras de mansinho, o azul laranja, o encarnado lilás, e as nuvens salpicadas de estrelas são rastos de tinta em gáudio de um pintor que nunca vi. Passava de mão em mão, de colo em colo e recebia sorrisos de repente emancipados, olhares em que brilhava um futuro, óculos quadrados em que me via minúscula de olhos escuros e cabelo aos caracóis. Foi ontem e eu criança jogava à bola, por entre as calças com boca de sino a badalar reivindicações que não entendia, numa confiança colorida que rasgava horizontes

Joana, tu és uma Maria rapaz!

e corria para fugir aos adultos que jogavam comigo à apanhada, de repente crianças de novo, soltos de novo, novos de novo, desenovelados das enrascadas em que marinheiros, cartógrafos e reis os enfiaram com a ajuda de senhoras de casacos de pele incapazes de matar uma lebre, ofendidas com a ideia de ferir uma raposa, escandalizadas com o assassínio de uma das galinhas que comem com agrado, fumando de boquilha por trás dos jogos de canastra. Senhoras indignadas, à hora dos chás de caridade, com as revoltas dos pretinhos tão engraçados quando são pequenos, mas selvagens, meu Deus, quando se fazem grandes e aprendem, sabe-se lá onde, as ideias de proprietários ofendidos com a intrusão alheia. Lembro-me das paredes em que tanta vez

Um dois três, Macaquinho do chinês!

jogámos o tempo das nossas tardes, fundos garridos com foices e martelos, em que os punhos em riste e as setas vergadas se acotovelavam sobre fundo vermelho e laranja aos passou bem amarelos, tantos e tão alegres os feriados, Viva o Primeiro de Maio e Povo e MFA, as greves gerais, solidárias nas boleias para chegar ao emprego, uma espécie de Sábado para sempre em que cada rosto igualdade, um homem bonito de cabelos brancos ao lado de outro de bochechas na televisão,

Quatro cinco seis era uma história de reis e uma colher de papa. Come a papa, Joana, come a papa

apesar do medo, pela manhã, dos homens que, ouvia dizer, matavam à porta dos prédios ao fundo da Avenida e nos entravam em casa, foragidos, pela televisão a preto e branco. Bombas, aviões, armas desaparecidas, polícia e exército em piquetes de

Boa noite, os seus documentos por favor, pode seguir, boa viagem.

Padres bombistas, ouvia dizer, sedes em fogo, ouvia dizer, a minha mãe estremunhada, com ânsias dos tempos da catequese e tiques de vanguardista que não queria ser, o meu pai algures em mim um menino vestido de calções, assustado, a conduzir triciclos, trotinetas e carrinhos de esferas, cantando e rindo, a apontar ao céu a mão alegre de lusito a fingir que é nazi, amigo do seu chefe, fiel, na obediência e no medo, à nação e ao seu líder, regressado numa nau, de parafuso a menos que os operários da Lisnave apertam à martelada nos meus sonhos, quando desembarco arrepiada para cima da cama, e me debato com tigres enormes de catanas nas mãos, elefantes cegos de trombas em riste, cabeças de homens em estacas de madeira, mulheres aos gritos com os filhos a sangrar ao colo, palhotas a arder, helicópteros à deriva num zumbido de mosquitos, pára-quedistas apoquentados, estudantes de Coimbra a chorar, de capa ao pescoço e G-3 na mão, sangue, carne estilhaçada, um fedor a cinza e a porco chamuscado, o meu pai a passar por cima de nós no céu e a deixa-me cair, pesadíssima, bomba por entre as bombas, pacote de morte e agonia, na mesma brancura azeda que me surpreende nas aulas, no caminho para casa, e me deixa desamparada no tempo sem saber onde estou, estranha de repete a mim, ausente no espaço apesar de ali, sem ver, sem ouvir, assustada com a minha voz se por acaso falo, extensão disforme em que me desfaço, envergonhada, ignorando porquê, chorando sem razão, numa surpresa de pés crescidos e de pernas em que tropeço, num torpor de mim mesma que me afunda para baixo da terra

És a cara da tua mãe, Joana!

a ver-me, de repente, de camisa verde e saia bege de mão direita involuntariamente estendida, sentinela das mais lusas tradições, apavorada por um homem de cinzento douto, amante em segredo da Padeirinha, íntimo de Viriatos, companheiro de navegantes com barba longa e chapéu quadrado, vestidos de calções esquisitos e sapatos de bailarina, de canudo na mão e dentes compridos de vampiro, olhar de ventríloquo, sorriso de ilusionista, uma voz fanhosa e aguda de falsete com que parece falar às criancinhas num tom retorcido de

Mostra cá o pirilau que eu já to corto, malandro!

Ó Joana, esconde isso que é vergonha!

numa declaração permanente de

Odiai-vos uns aos outros como nós vos odiámos, nós que vos detestámos, nós que vos sangrámos, nós que vos fizemos cambada de ignorantes e de analfabetos, nós que vos quisemos pobre, nós que vos fizemos triste, nós que vos quisemos gente obediente e vos fizemos cega e sem razão e sem vontade e sem futuro.

 

 


Miguel Campos Proença

 

 

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